A covid-19 mata menos nos países com pessoas vacinadas com a BCG.

A relação entre a mortalidade e mobilidade associada à covid-19 e as regiões onde existe uma estratégia de vacinação da BCG está a ser estudada por várias equipas de investigadores.

A vacina da BCG pode conferir uma proteção parcial contra o covid-19 atenuando os casos mais graves e reduzindo a mortalidade? Há alguns estudos que sugerem que sim, mas também há muitos cientistas que defendem que é preciso esperar por resultados em ensaios clínicos antes de avançar para qualquer tipo de medida. Na última semana foi divulgado mais um estudo, assinado por investigadores na Índia, que também conclui que há “uma marcada diferença” na média da taxa de mortalidade entre os dois grupos de países, com e sem vacinação da BCG. Sem BCG a média é de 5,2% e com a vacina a média é 0,6%.

Entre muitas outras hipóteses, surgiu recentemente a possibilidade de existir uma ligação entre a estratégia de vacinação da BCG e a mortalidade e mobilidade associadas à covid-19. A relação pode parecer totalmente casual e até inusitada. O que é que a imunização contra a tuberculose pode ter a ver com este novo coronavírus? Pode ter. “Sabe-se que a vacinação BCG tem efeitos de proteção em algumas doenças, para além da proteção contra a tuberculose, e que o mecanismo da trained immunity poderá explicar isso”, explica ao PÚBLICO o cientista português Paulo Bittencourt, que trabalha no Instituto Jenner da Universidade de Oxford, no Reino Unido, como primeiro autor de um trabalho que identifica novos antigénios (moléculas estranhas ao organismo que desencadeiam uma resposta imunitária) que poderão ser usados para um reforço da BCG.

Por saber do que fala, Paulo Bittencourt pede cautela. “Neste momento, ainda é muito cedo para se tirar qualquer conclusão de que a BCG promove alguma proteção especificamente contra a covid-19. É preciso fazer ensaios clínicos para produzir evidência científica de que a BCG tem um efeito sobre a covid-19. Presentemente, há ensaios clínicos a decorrer na Austrália e na Holanda para responder a esta questão. Admito que a BCG possa ter um efeito protetor parcial contra a severidade da covid-19, mas não contra a infecção do SARS-CoV-2”, refere o cientista, que insiste: “Volto a dizer que ainda não há essa evidência científica formal.”

As provas de uma proteção alargada da BCG a outras doenças (até mesmo no cancro da bexiga) existem, mas ainda não existem para a covid-19. “Teremos de esperar pelos resultados dos ensaios clínicos”, conclui Paulo Bittencourt, que sublinha ainda que dois dos artigos divulgados sobre este assunto são pré-publicações (sem revisão por pares) disponíveis numa plataforma de acesso aberto.

Ensaios clínicos em curso

“A proteção oferecida pela vacina BCG ao SARS-CoV-2 tem sido atribuída aos seus efeitos inespecíficos [NSE, na sigla em inglês]”, constatam os autores Devi Dayal e Saniya Gupta são investigadores no Departamento de Pediatria do Instituto de Educação e Investigação Médica em Chandigar, na Índia, e lembram que a “gama de NSE” conhecidos da BCG inclui, por exemplo, uma redução na incidência de infecções respiratórias em crianças e efeitos antivirais. “Para vários vírus, como vírus sincicial respiratório para o qual não há vacina, febre-amarela, vírus do herpes simples e vírus do papiloma humano, foi observado um efeito in vitro ou in vivo favorável em vários estudos”, sustentam ainda.

O artigo adianta que com base nesta hipótese de proteção parcial contra a “susceptibilidade e/ou gravidade da infecção por SARS-CoV-2, mesmo durante a epidemia, alguns países como a Austrália e a Holanda, que não praticam a vacinação de rotina com BCG, já lançaram rapidamente ensaios clínicos de fase 3”. A 17 de Março também foi noticiado que uma equipa de investigadores do Instituto Murdoch, na Austrália, iria testar em quatro mil profissionais de saúde com covid-19 uma vacina utilizada para tratar a tuberculose, para verificar a eficácia na mitigação dos sintomas da doença “Embora originalmente tenha sido desenvolvida para tratar a tuberculose e de ainda ser administrada a mais de 130 milhões de bebês anualmente, [a vacina do] BCG (bacilo de Calmette-Guérin) também reforça outros aspectos do sistema imunitário”, explicou um dos investigadores do Instituto Murdoch, em Melbourne, citado pela agência de notícias AFP.

A única vacina contra a tuberculose é a BCG, em Portugal, em 2016 a Direção-geral de Saúde alterou a indicação da vacina que passou de universal para seletiva, abrangendo hoje apenas as crianças que são identificadas nas maternidades como pertencentes a grupos de risco. Apesar da proteção que garante, a imunização é menos eficaz contra algumas formas graves da doença e infecções pulmonares em adolescentes e adultos.

No artigo publicado na quarta-feira, os autores argumentam que foi na sequência de outros trabalhos publicados recentemente que decidiram “comparar o impacto da covid-19 em termos de taxas de mortalidade por casos (CFR, na sigla em inglês) entre países com alta carga de doenças e aqueles com políticas de revacinação da BCG, presumindo que as práticas de revacinação forneceriam proteção adicional à população contra a covid-19”. E concluem: “Encontrámos uma diferença significativa na CFR entre os dois grupos de países. Os nossos dados também apoiam a visão de que a vacinação universal com BCG tem um efeito protetor na evolução da covid-19, provavelmente impedindo a progressão para casos mais graves e mortes”.

Para confirmar este e os outros estudos apresentados até agora sobre o mesmo tema é urgente avançar para ensaios clínicos capazes de confirmar esta possibilidade, sobretudo nos países que não têm uma “política universal de vacinação da BCG”. Os autores admitem que o estudo tem limitações que passam, por exemplo, pelo facto de a taxa de mortalidade da covid-19 ser influenciada por uma série de fatores (como o tipo de medidas adaptadas e os recursos de saúde disponíveis em cada um dos países), mas também frisam que a garantia de uma proteção parcial com a BCG podia ser particularmente importante em países com poucos recursos para responder a esta pandemia.

Na análise são apresentados vários exemplos, sem nenhuma referência a Portugal. “Por exemplo, a Espanha iniciou sua política universal em 1965 que durou até 1981 (16 anos) e tem uma alta taxa de mortalidade (29,5 mortes por milhão de habitantes). Por outro lado, a Dinamarca iniciou sua política em 1946 e terminou-a em 1986 (40 anos) e tem quase dez vezes menos mortes por milhão de habitantes, com 2,3 mortes”, referem no trabalho publicado a 28 de Março.

No entanto, este trabalho de Aaron Miller foi já duramente criticado por outros investigadores, nomeadamente numa carta publicada na Nature onde se adianta que “há perigo em dizer que existem provas de que uma vacina secular pode aumentar a imunidade em indivíduos, fornecendo proteção inespecífica a outras doenças e, por extensão, protegendo contra covid-19 ou reduzindo a gravidade da sua manifestação com base apenas nesta análise”. É preciso esperar pelos resultados de ensaios clínicos, avisa-se mais uma vez, na carta onde são apresentadas as várias críticas ao trabalho.

Há ainda um outro estudo assinado por uma equipa com investigadores dos EUA, da Irlanda e de Itália, liderado por Paul Hegarty, um urologista especialista em cancro da bexiga, sobre o mesmo tema e onde são apresentados dois mapas que ilustram as diferenças claras entre a mortalidade por covid-19 nos países onde há e onde não há uma estratégia de vacinação da BCG.

A verdade é que a comunidade científica tem procurado freneticamente soluções para tratamento e cura deste problema de saúde pública. Tudo o que faça a diferença (por pequena que seja) pode ser importante. Mas é sempre preciso apresentar provas da segurança e eficácia que qualquer solução proposta. Sejam velhas drogas com uma nova indicação, novas drogas concebidas especialmente para derrotar o SARS-CoV-2 e tratar a doença, uma nova vacina capaz de o eliminar da face da Terra ou uma velha vacina que confere uma proteção parcial que pode evitar mortes e travar os casos mais graves, todos os esforços importam.